Falar sobre esse clássico da literatura brasileira, escrito ainda em 1899, presente em leituras obrigatórias em escolas e vestibulares há décadas, sem cair na mesmice é um grande desafio. Não tenho a pretensão de fazer isso neste texto. A ideia aqui é passar um pouquinho da forma como eu interpretei essa história polêmica e ambígua de Machado de Assis, sem rótulos e com um olhar mais apurado sobre essa história! Venha comigo!
A narrativa é contada em primeira pessoa por Bento Santiago, em retrospectiva. Ele, já mais velho, resolve escrever essa história para ligar algumas pontas de sua vida que ficaram soltas.
Uma passagem que me marcou bastante, que acontece na primeira página do livro, é esse personagem nos contando o porquê ele ganhou o apelido Dom Casmurro. Segundo ele, esse apelido foi dado por seus vizinhos e se refere ao seu modo de viver, de forma pacata e calada. Na sequência ele nos pede para que a gente não vá ao dicionário para conferir, que a gente acredite que aquele era de fato o significado. Machado de Assis faz isso intencionalmente porque ele sabe que muitos leitores iriam pesquisar no dicionário. É exatamente isso que ele quer: colocar na cabeça do leitor, já de imediato, uma dúvida sobre essa história que Bentinho está nos contando.
O significado de Casmurro também pode ser teimoso, ensimesmado e cabeçudo. E, confesso que, entre outras coisas, durante a narrativa eu achei que esse protagonista era exatamente assim.
Desde o início, a narrativa de Bentinho nos conta que as pessoas achavam Capitu um risco para ele, principalmente, por afastá-lo dos planos de sua mãe de leva-lo ao seminário para ser padre. Frases como “A pequena é desmiolada” e “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, quando ela ainda tinha apenas 14 anos já nos coloca em desconfiança com esse discurso. Já nos mostra, claramente, que o discurso estava carregado de julgamento e de objetivos do nos levar a determinada opinião. Já, inclusive, ouvi muitas dessas opiniões vindas de leitores. Mas, não me convenceram.
Bentinho e a “olhos de ressaca”, como também Capitu era conhecida, se deram conta de que estavam apaixonados quando ele tinha 15 anos e ela recém completado 14. Desse momento em diante, os dois começaram a criar estratégias para tirar da cabeça de Gloria, mãe de Bentinho, de que ele precisava se tornar padre. Capitu entrou nessa empreitada de corpo e alma e, continuou determinada, mesmo após Bentinho ir para o seminário.
Foi no seminário que Bentinho conhece aquele que se tornaria o seu grande amigo e, mais tarde, o seu maior pesadelo, Escobar. No desenrolar dessa trama, Bentinho, com ajuda de seu amigo seminarista (que também não queria ser padre – e não foi) conseguiu convencer a mãe que a promessa poderia ser paga de outra maneira e que Bentinho não precisaria se tornar padre para isso. Ele foi para a faculdade e se formou advogado em São Paulo. Aqui cabe um adendo: durante toda a narrativa percebi um tom de julgamento sobre Capitu. Parecia que ele, com toda a sutileza, nos conduzia para uma determinada opinião sobre ela, bem característico de um advogado.
De volta ao Rio de Janeiro, se casa com Capitu e Escobar se casa com Sancha, melhor amiga da “olhos de ressaca”.
Bom, o casal Escobar e Sancha teve uma filha logo no início do casamento. Bentinho e Capitu tentaram durante muito tempo, mas não estavam conseguindo ter um filho. Aquilo foi uma grande frustração para o casal. Pela narrativa, aquilo estava se tornando um problema. Mas, depois de muito tempo, veio o tão esperado Ezequiel. Entre os casais, havia uma conversa de que a filha de Escobar e Sancha ia acabar namorando Ezequiel.
Quando o filho de Capitu e Bentinho já era uma criança ele começou a imitar todo mundo, uma brincadeira típica da idade. Entre todos que ele imitava estava Escobar. Foi então que Bentinho começou a desconfiar de Escobar e cismou que seu filho se parecia muito com seu amigo. Não só os trejeitos como, também, fisicamente. E essa semelhança, para Bentinho, era muito além da conta. E essa desconfiança se tornou insustentável para ele, quando ele resolveu tomar uma decisão.
Agora eu vou contar o final dessa história. Se você não quiser saber, vá para o próximo intertítulo
A desconfiança de Bentinho aumentou a tal ponto que ele não quis mais saber de Capitu, tampouco quis saber de Ezequiel. Mandou os dois para a Europa. Para manter as aparências, já que sua família era tradicional da alta sociedade do Rio de Janeiro, momento em que as aparências eram muito valorizadas no século 19, ele ia com frequência para a Europa, mas não visitava a “família” que, na verdade, tinha deixado de ser família para Bentinho.
Capitu morreu na Europa e seu filho, já adulto, voltou para o Brasil para ficar com seu pai. Ele lhe contou todas as boas coisas que Capitu tinha lhe falado sobre ele – o que podemos perceber que a família não tinha sido desfeita para Capitu, até o momento de sua morte. Enfim, ao final, houve esse reencontro entre pai e filho.
Ciúme de Bentinho, um capítulo especial
Cabe destacar aqui que, em toda a narrativa desenvolvida, sob a ótica de Bentinho inclusive, ele se mostra muito ciumento. Ele explicita isso e mostra que sabe sobre esse seu defeito. Ainda na adolescência teve um episódio na casa da Sancha em que o pai dela, apontando a uma fotografia de uma mulher na parede perguntou a Bentinho: “não se parece com Capitu? Pois é, é a mãe de Sancha”. Ali, ele já se matou de ciúmes. Em outra ocasião, ele já teve ciúmes do mar, imaginem vocês. Bentinho se mostrava te fato uma mente perturbada pelo ciúme doentio.
Sobre os protagonistas
Bento Santiago: acho ele uma pessoa fraca e insegura, que amou Capitu, mas também desconfiou dela e não deu ao menos uma chance de ouvi-la. Desprezar o filho foi desprezível. Desde o início eu criei uma desconfiança sobre o discurso dele e essa desconfiança perdurou durante toda a narrativa. Ao final da vida, ele resolve contar essa história, não para juntar pontas soltas da vida como ele disse no início do livro. Mas para curar algum remorso ou alguma culpa que ele carregue. Para contar a ele mesmo que ele tinha razão. Essa é a nítida impressão que foi passada a mim.
Capitu: essa personagem me mostrou ser forte e determinada. Ela buscou aquilo que desejava com muito afinco. Assim foi na adolescência para que Bentinho não se tornasse padre. Acho que ela foi apaixonada por ele sim e, particularmente, não acredito na traição. Acho que tudo isso foi uma fantasia da cabeça doentia de Bentinho. Mas, existe essa dúvida e eu concordo que há margem para essa dúvida. Me passou pela cabeça, ainda, se de fato ela traiu Bento só para lhe dar o filho que ele tanto desejava, por ele, talvez, ser estéril. Mas essa é uma outra interpretação que essa obra aberta permite.
Enfim, eu acho, na verdade, que nem Machado de Assis acreditava nessa traição. Apesar de toda a narrativa ter sido feita por Bentinho e seu discurso conduzir o leitor para culpar Capitu, ele constrói o personagem de maneira que a gente crie uma certa antipatia dele. Isso é machado de Assis. Ele trabalha com maestria a ambiguidade dessa história.
Bom, essa foi a minha interpretação de Dom Casmurro. E você, acreditam que Capitu traiu ou não o Bentinho? Podemos vagar por essa história. Assim Machado a fez!
3 Comentários
Terminei hoje de ler pela primeira vez! É fantástica a forma como o autor consegue nos transmitir tão bem a angústia da dúvida. Estou pensando em reler só pra reparar nos detalhes, tentar encontrar fundamento pra traição. O Bentinho parece tão seguro da semelhança indevida entre o filho e o amigo que fica parecendo que não haveria dúvida, mas, como você, eu tive antipatia pelo ciúme descabido dele ao longo do livro!
Que a Capitú ainda o elogie ao Ezequiel na Europa (“o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido”) ficou na minha cabeça como forte argumento a favor da traição. Ela estaria elogiando-o enquanto culpada. Se se sentisse injustiçada provavelmente teria muito ressentimento para fazer elogios ao Bentinho, especialmente elogios tão fortes. Por outro lado, sendo uma mulher tão forte, pode ter optado por elogiar o Bentinho apenas para o Ezequiel, de forma a não estragar a imagem que seu filho tinha do pai.
Termino na dúvida mesmo, fazer o que. Obra genial.
Excelente comentário!! Que bacana ver a sua interpretação. Como uma obra aberta, acho que cabe qualquer conclusão. Para mim, Capitu elogia Bentinho ao filho justamente para criar uma imagem positiva do pai que tinha os abandonado. Ela faz isso para não decepcionar o filho. E outra: ainda assim, é Bentinho nos contando isso. Será que aconteceu mesmo ou ele estava tentando nos convencer de que ela estava culpada? Machado era realmente um gênio! E qualquer interpretação cabe nessa história. Quanto a suposta semelhança do filho e seu amigo, ela é muito frágil. Bentinho, com seu ciúme doentio, também enxergou semelhança num quadro na casa de um personagem da história com Capitu. E ficou enciumado. Ou seja, ele realmente era doente. Comente aqui depois da sua segunda leitura para me contar as suas impressões!! Também fiquei com vontade de ler de novo!! Um abraço
Uma coisa importante a se levar em consideração também é a questão já nos capítulos que antecederam a morte de Escobar sobre o possível “flerte” que segundo Bentinho, aconteceu entre o mesmo e Sancha. A narração feita pela perspectiva do ciumento e inseguro Bento leva ao leitor interpretar que a Capitu haveria traído o marido, o que acredito que possivelmente não aconteceu.